Dancing with the devil's past


Passado. Inconsistência, que num momento de ilusão nos parece concreto, e que sob um leve toque se desfaz. Este fantasma que nos acompanha, que faz questão de que olhemos para a face dele a todo tempo, que faz questão de que aprendamos a encará-lo com serenidade. Que nos tenta a todo momento a querer mergulhar em sua essência e ter de novo o que já se foi. Lembranças dançam em nossa frente, bailam sorridentes, tão convidativas... Mas você pisca os olhos e elas se foram. E de repente você se pega num momento tão bobo, alimentando a esperança vã de que um dia vá brincar de "era mais uma vez".
Tento lembrar-me a todo tempo de que o passado é um tanto matreiro, e que ficar encarando a sua face bloqueia a nossa visão do aqui e do agora. Mas é um tanto inevitável ficar admirando-o num momento de baixa guarda.

Leve


Eu estou voltando. Com a pele menos pálida, o cabelo levemente mais curto e com o pescoço tatuado. Volto mais leve também: leve de cabeça, corpo e espírito. Faz bem mudar os ares, desacelerar, por os pés pro alto e deixar o dia terminar; passar o dia com quem você gosta, dizer o que pensa, mostrar o que sente; dar risada, respirar bem fundo, entrar debaixo d'água. E que cada um desses pequenos rituais de "anti-ziquizira" abram os caminhos para coisas boas e agradáveis, que (assim espero) estejam à minha frente. É tão agradável se encarar e se sentir satisfeita, em paz consigo mesma. Tão agradável quanto o leve ar do interior me invade e me enche de suspiros.

Construindo pirâmides


O ofício não é fácil. Digo, construir essas pirâmides de cartas. Você passa um tempo fazendo a base, juntando as cartas, pra elas ficarem bem "firmes", na medida em que for possível. Você vai fazendo um andar por vez, e estes vão afinando, pouco a pouco. Exige paciência, precisão e uma dedicação enorme. Por vezes uma carta escorrega, a pirâmide se abala, mas com um toque aqui, outro ali, tudo se ajeita. Pra por a última carta você já deve estar de pé, de tantos andares que já foram construídos. De repente... bam! Lá se vai com toda a delicadeza do sopro de uma brisa o seu trabalho. Elas ficam rodando por um momento em volta de você, naquele redemoinho. E então, com todas aquelas letras e números ao seu redor, você, atônito, não faz ideia de quando e como e por onde recomeçar. O ofício não é fácil, você já sabia.

Boas vindas ao fim do ano



O relógio vai languidamente tiquetaqueando, e já estamos no meio do ano. Os meses passam feito a lebre endiabrada. O cabelo por pouco não atinge o meio das costas, e o que era castanho agora é um tom desbotado, perto do cinza. A pele cada vez mais fina e mais alva. A sensação que tenho é a de quem passou uma tarde sob a luz de uma luminária. Sob a luz que pintava de um amarelo pastel e melancólico a pilha de livros da qual eu não tirava a cara. Na verdade, as tardes foram muitas, de fevereiro, março, abril, maio, junho, julho... Dezembro está ali na esquina, fingindo estar escondido, me esperando ansiosamente.

Que nem feijão com arroz




Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?

Doce Ironia


O ácido em minha saliva corrói a minha boca. O baixo pH da minha crítica, da minha revolta. Corrói pouco a pouco, destruindo e desgastando a minha garganta, já fraca do praguejar ignorado pela sociedade alienada, surda. O meu estômago já não atura tanto desgosto.
E em cada gota de absurdo, em cada pedaço de injustiça e hipocrisia que me empurram, a fortes punhos, goela abaixo, minha situação piora. Me sinto traída, envenenada pelo mundo que me abriga. Doce ironia.

Beira Mar


Eu entendo a noite como um oceano
Que banha de sombras o mundo de sol
Aurora que luta por um arrebol
Em cores vibrantes e ar soberano
Um olho que mira nunca o engano
Durante o instante que vou contemplar

Além, muito além onde quero chegar
Caindo a noite me lançou no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar

Zé Ramalho