A Menina Que Roubava Caixinhas De Leite



Eu, o sofá, uma almofada e a caixa de leite.

É curioso que depois de tantos anos eu não tenha esquecido algo tão bobo.
Eu deveria ter por volta de três ou quatro anos de idade, um projeto de ser humano. Naquele dia não havia muita gente em casa, alguém cozinhava. Fui até a cozinha, o apartamento era minúsculo, a cozinha era um corredor, não cabia muita gente lá, eu geralmente não era bem vinda na cozinha, mas quem quer que estivesse cozinhando, não se importou com a minha presença. Abri a geladeira e lá estava: uma bela caixinha de leite, aquelas longa vida, com leites processados à uma ultra alta temperatura; eu sei disso agora, naquele dia qualquer da década de 90, ela resumia-se somente à uma caixinha de leite comum, com a pontinha cortada; Então, olhei novamente para quem cozinhava, e ela parecia estar indiferente ao fato de eu estar na cozinha fazendo o que quer que seja, e então arrisquei a pegar a caixinha de leite. Eu não liguei se ela iria me mandar devolver, eu peguei. Deitei numa almofada sobre o sofá, cruzei minhas até então pequenas pernas e bebi o leite, sem copo mesmo, direto na caixinha. Ai de quem reclamasse. O leite de caixinha nunca estivera tão gostoso como naquele dia. O mundo girava em torno daquela estranha cena, o tempo sequer ousou passar, ninguém incomodou. Levantei-me languidamente, coloquei a caixa vazia em cima da pia, e saí com um estranho ar de triunfo da cozinha. O mundo nunca mais parou para que eu bebesse uma caixinha de leite só minha, aliás, ele nunca mais parou para que eu fizesse coisa alguma.

Where do they all come from?


O Lennon se perguntava "all the lonely people, where do they all come from?" e até hoje essa pergunta não foi respondida. Acho divertido cantarolar esse trecho de Eleanor Rigby, porque sei que eu sou uma eleanor rigby da vida, e penso o mesmo de você. Gosto também de pensar, que não chegamos ao trágico fim que o Lennon retrata nos versos tristes dessa música. Porque por alguma graça, coincidência ou consequência, ou qualquer outra ordem (ou a falta dela) que a natureza obedeça, tivemos a chance de nos encontrar. Talvez ainda sejamos tais qual a Eleanor Rigby, existem muitos e muitas tais qual ela pelo mundo. O bom é conhecer essas pessoas, e pensar de que elas vieram do nada, mas que a partir do momento que você a conhece e passa a amá-las, elas deixam de ser fulano vindo de lugar algum que vai para algum lugar, e passam a ser fulano que veio de lugar algum e que agora têm um lugar, caso ele não tenha pra onde ir, do lado esquerdo do nosso peito. E você sabe, você sente que mesmo sem poder oferecer nada de muito especial, você moverá montanhas e fará o impossível pra garantir o conforto desse estranho. Seja bem-vinda, garotinha complicada vinda de lugar algum, segure a minha mão, vamos em busca de um lugar que seja nosso. Caso a gente não ache, quem se importa? Temos uma à outra.

a vida é mesmo coisa muito frágil, uma bobagem, uma irrelevância, diante da eternidade do amor de quem se ama.