Construindo pirâmides


O ofício não é fácil. Digo, construir essas pirâmides de cartas. Você passa um tempo fazendo a base, juntando as cartas, pra elas ficarem bem "firmes", na medida em que for possível. Você vai fazendo um andar por vez, e estes vão afinando, pouco a pouco. Exige paciência, precisão e uma dedicação enorme. Por vezes uma carta escorrega, a pirâmide se abala, mas com um toque aqui, outro ali, tudo se ajeita. Pra por a última carta você já deve estar de pé, de tantos andares que já foram construídos. De repente... bam! Lá se vai com toda a delicadeza do sopro de uma brisa o seu trabalho. Elas ficam rodando por um momento em volta de você, naquele redemoinho. E então, com todas aquelas letras e números ao seu redor, você, atônito, não faz ideia de quando e como e por onde recomeçar. O ofício não é fácil, você já sabia.

Boas vindas ao fim do ano



O relógio vai languidamente tiquetaqueando, e já estamos no meio do ano. Os meses passam feito a lebre endiabrada. O cabelo por pouco não atinge o meio das costas, e o que era castanho agora é um tom desbotado, perto do cinza. A pele cada vez mais fina e mais alva. A sensação que tenho é a de quem passou uma tarde sob a luz de uma luminária. Sob a luz que pintava de um amarelo pastel e melancólico a pilha de livros da qual eu não tirava a cara. Na verdade, as tardes foram muitas, de fevereiro, março, abril, maio, junho, julho... Dezembro está ali na esquina, fingindo estar escondido, me esperando ansiosamente.

Que nem feijão com arroz




Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?

Doce Ironia


O ácido em minha saliva corrói a minha boca. O baixo pH da minha crítica, da minha revolta. Corrói pouco a pouco, destruindo e desgastando a minha garganta, já fraca do praguejar ignorado pela sociedade alienada, surda. O meu estômago já não atura tanto desgosto.
E em cada gota de absurdo, em cada pedaço de injustiça e hipocrisia que me empurram, a fortes punhos, goela abaixo, minha situação piora. Me sinto traída, envenenada pelo mundo que me abriga. Doce ironia.

Beira Mar


Eu entendo a noite como um oceano
Que banha de sombras o mundo de sol
Aurora que luta por um arrebol
Em cores vibrantes e ar soberano
Um olho que mira nunca o engano
Durante o instante que vou contemplar

Além, muito além onde quero chegar
Caindo a noite me lançou no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar

Zé Ramalho

Tinha um bicho no peito


Tenho um bicho no peito. Bichinho revolto, que parece ansiar para sair. Agita suas asas compassadamente, por vezes entrando em euforia, ou permanecendo aquietado. O bichinho voa dentro de mim, se debate, tenta se soltar. às vezes, quando machucado, torna-se áspero, e faz doer. Como se descontasse em mim a sua raiva de bichinho, por ter deixado que isso acontecesse à ele. Andava muito revoltado, me machucava continuamente.
Um bichinho um tanto sensível, afetado, complicado e desconfiado do mundo, temeroso por se machucar. Eis então que o animalzinho fora cativado, e engana-te se achas que isso significaria "domado". Não, não há quem o dome.
E como tem me dado trabalho! Se debate, desejando sair, se dar a ti. Mas essa agitação não faz doer, de jeito algum. E me deixa tão feliz! Pois ele canta, o canto mais alegre, na esperança de que você ouça.

Retrato Falado

Olhos, que conseguem enxergar muito além da sua superfície.
Ouvidos, que estão dispostos a ouvir todas as suas divagações mirabolantes.
Boca, o sorriso mais agradável.
Braços, com o mágico poder de afastar medos e de acalmar.
Mãos, que simbolizam o cuidado.
Pés, os quais você seguiria a qualquer lugar, pouco importa a direção.

É a pessoa amada.

60 segundos


Soa o alarme de incêndio. Você tem 60 segundos para deixar o local, o que você levaria consigo?

Uma ideia um tanto quanto aleatória, não? Achei um tanto quanto curioso, estava eu, em pleno sábado a noite, esvaziando uma caixa de chocolates e assistindo à um filme que em algum momento falou disso. A parte curiosa, é que eu já me fiz essa pergunta centenas de vezes. Não, não estou brincando, quando eu era pequena e ficava divagando com meus ursinhos de pelúcia sobre tal fato, eu dizia que salvaria todos eles, e estaria feliz com isso. Você já pensou sobre isso? Entre todos os pertences do seu lar, você já pensou no que gostaria de salvar?
A sua vontade é de levar a casa inteira consigo, mas pense um pouco no que realmente importa.
Suas joias, o seu computador, celular? Os seus livros, CD's, as suas roupas? As fotos, as cartas? O cartão de crédito? Se apresse, você tem que sair da casa.
Eu pensei bastante, e ainda não sei. Só tenho a certeza de que levaria os meus bichinhos de pelúcia.

And stop crying your heart out


'Cause all of the stars

are fading away

Just try not to worry

you'll see them someday

Take what you need

and be on your way

And stop crying your heart out

Um final diferente


A gelada noite chegara há tempos, o frio permanecia desde a manhã. Os carros passavam apressados pelas ruas num vai-e-vem incansável. O vento uivava e levava consigo as folhas caídas. Cachorros de rua passavam fuçando cada lixeira e cada amontoado de lixo da metrópole. Não, não era um local seguro para se estar, não à aquela hora. Lia desde cedo um clássico romance de velhas páginas e capa desgastada. Era um livro triste ao que me parecia, a moça chorava sem fazer som. A ponta do fino nariz estava tingida de vermelho, em um rosto tão alvo. Os olhos transbordavam incansavelmente. Estava em um banco, iluminado por um dos únicos postes que funcionavam, a luz a tingia de amarelo. Já estava tarde, eu me perguntava até quando a moça ficaria ali, era realmente perigoso para gente como ela. Gente que não vivia naquelas calçadas, como eu, ou como tantos outros. Por que ela estava ali se provavelmente teria uma casa quente e uma poltrona confortável a sua espera? Vai ver eu não entenderia os motivos dela. Eu deveria alertá-la? Ela teria medo de mim, ou talvez fosse maldade atrapalhar aquele momento tão íntimo.
Ela levantara. Oh sim, já era hora! O relógio no alto da torre marcava pouco mais das dez horas. Saiu languidamente, aparentemente em direção ao metrô, mas ela ia se distanciando a tal ponto que meus olhos cansados já não me permitiam vê-la. Curiosamente, ela deixara o velho livro em cima do banco. Fui em direção ao banco que me acomodaria durante a noite e peguei o livro. Obviamente, minha estupidez não me permitiu decifrar o que tantas letras miúdas diziam. Observei as tantas páginas por um tempo e por fim usei o livro para acomodar minha cabeça.
Na manhã seguinte perguntei a uma garotinha que fotografava a velha praça sobre do que se tratava o livro. Ela parou por um instante, hesitando em falar comigo, imagino. Por fim me respondeu, lendo a contra-capa, que era uma história de amor, que por sinal ela já havia lido. Tagarelou por minutos me explicando a triste história, em que no fim a garota ficava sozinha. Achei estranho, geralmente se fala em final feliz, mas deixei que ela concluísse. Olhando o livro, ela me disse que rasgaram a última página, e bem no cantinho, com letras bem caprichadas, estava escrito: "Eu quero um final diferente."
Agradeci à mocinha, que se despediu e foi embora. Carreguei o livro comigo por um tempo, e em um ensolarado dia de primavera, presenteei uma moça bonita, já de idade, que passava apressada por ali. Não a vi depois, nem o livro.
Muito tempo se passou, e um dia vi a garota chorosa passando por ali, que olhou para o banco somente por um momento e seguiu em frente.

Válvula de Escape


Eu quero sentir. A chuva escorrendo pelo meu rosto e pingando da ponta do meu nariz, o vento bagunçando e chicoteando o meu cabelo no meu rosto, o chão sob meus pés, o sol se impondo lá do alto, dando brilho a tudo, reluzindo em minha pele. Eu quero sentir. O meu coração acelerado, as palavras presas na garganta, a respiração ofegante. Eu quero sentir. O rosto se tornando rubro, o sorriso se formando, a lágrima brotar. Eu quero, eu preciso sentir. A sua pulsação, a sua mão segurando a minha, os seus olhos nos meus. Eu quero ser, eu quero sentir, eu quero viver, quero vir, quero ver.